Por uma civilização drapeada (com Roberto Rossellini)
Uma civilização adaptada à condição humana, que não perca de vista que "uma só coisa é necessária" e que "o homem é falível, e não pode ser somente eficaz".
Drapeado: o integral, realista x Costurado: o planejado, racionalista
Não foram poucas as vezes que o cineasta romano Roberto Rossellini (1906-1977) - fundador do neorrealismo italiano, pai do cinema moderno, “Adão do qual todos nós descendemos”, como disse Federico Fellini - advogou publicamente por uma civilização que ele chamava de “drapeada”, em contraste com uma civilização “costurada” então em plena ascensão. Tal defesa, aliás, é o que está em jogo em todos os seus filmes, mais visivelmente nos que fez com Ingrid Bergman como protagonista entre 1950 e 54, sobretudo Stromboli (1950), Europa 51 (1952) e Viagem à Itália (1954), que encabeçam a minha lista particular dos que chamo de filmes do drapeado - os quais revisito continuamente e, não por coincidência, são todos exemplares de ponta do realismo fenomenológico que venho apresentando em meu trabalho. Para Rossellini, defender a civilização ameaçada - e denunciar a “barbárie vertical” da outra, seus efeitos destrutivos - era questão vital, na qual se engajava com espírito heróico, donde a notável vitalidade que permeia seus filmes, além da seriedade e do gênio.
O diretor de Roma, Cidade Aberta (1945), leitor voraz, importou esses termos das obras do antropólogo Marcel Mauss (1872-1950) e do historiador Lucien Febvre (1878-1956), ambos franceses. Mauss repartia a espécie humana em duas categorias de acordo com o tipo de vestuário predominante em determinados momentos da história: a “humanidade drapeada”, pertencente sobretudo às civilizações dos países quentes, e a “humanidade costurada”, dominante nas regiões frias, que precisou ajustar as roupas (mais próximas ao corpo) por meio da costura. Febvre também elaborou sobre como esses dois tipos de vestimenta teriam influenciado aspectos sociais, culturais e comportamentais determinantes para os caminhos trilhados por diferentes civilizações. Rossellini se valeu dos termos como sínteses da visão de mundo e do modo de viver de diferentes culturas, associando o termo “drapeado” ao que é integral - a uma cultura que valoriza a pessoa inteira - e o “costurado” ao racionalismo e ao tecnicismo progressista. Drapeado é o tecido inteiro, sem costura, imagem de uma civilização que se adapta aos momentos e às diferentes necessidades do homem, mesmo às mais contraditórias entre elas - pois, no homem inteiro, não são raras, nem poucas, as contradições. O costurado, ao contrário, recorta mentalmente em pedaços o conhecimento da condição humana para, jogando fora, repelindo ou reprimindo o que não quer que seja visto ou aceito, o que não serve para o “projeto” - mas que constitui a essência e as tensões de nossa existência de modo inelutável - recosturá-la de acordo com seu plano racional artificial que nega ao homem os próprios fundamentos de sua existência, visando a refazer a sua natureza. É um projeto de sociedade que não é feito para o homem tal como ele é, mas que, ao invés disso, quer “refabricar” o homem, violando sua liberdade, para que sirva a propósitos contrários à sua condição e alheios à sua vocação. No drapeado, o homem é livre, pois lhe é dado ser irremediavelmente imperfeito e descansar na perfeição de Deus, sem perder o humor - reconhecendo a miséria de sua condição e a grandeza de sua vocação. No costurado, ele é escravizado, e agravam-se as enfermidades morais, espirituais e psíquicas.
O homem do drapeado é profundamente realista: olha para Deus, busca o Bem, o Belo, o Verdadeiro, mas aceita serenamente as tensões, as complexidades e os paradoxos desua constituição ontológica, física e metafísica. Ele quer viver instalado na realidade mesmo quando esta é insensata, pouco conveniente ou não completamente compreensível, preferindo isso a viver com uma concepção falsa de si e do mundo. Já o homem do costurado passa por cima do real e do essencial para forçar ao mundo, à realidade e ao ser humano a sua nociva lógica planejada. Acenando a Bruno Tolentino e Olavo de Carvalho, podemos dizer que o drapeado é o mundo como fato, goste-se dele ou não, e o costurado é o mundo como ideia - e, a partir da ideia, é também o mundo como projeto. Michel Henry, o fenomenólogo francês, identificou que nossa época é “caracterizada por um desenvolvimento sem precedente do saber, caminhando lado a lado com o desmoronamento da cultura”, por um cientificismo que coloca em crise as principais “práticas do sentir” por meio das quais a vida se exprime de forma direta, que são a religião, a ética e a arte. Rossellini expressou o mesmo em outras palavras:
Essas grandes ideias [as do Iluminismo de Voltaire, Rousseau e Montesquieu] surgiram e se propagaram ao mesmo tempo que as invenções técnicas e industriais e que o crescimento da população. (…) Mas neste curso febril e intoxicante de descobertas e novas conquistas, as contingências tomaram o controle das questões gerais; negligenciou-se o indivíduo, e com ele as suas reivindicações espirituais, morais e sociais. A “potência” dependia mais do que nunca das capacidades de produção. (…) À causa de necessidades sempre mais urgentes de técnicos, indispensáveis para o desenvolvimento das novas descobertas, o ensino universitário não se preocupou mais em transmitir uma imagem unitária do mundo, mas forneceu de maneira parcial estereótipos de uma realidade mutilada, para fins didáticos. O mundo atual é um mundo lotado de especialistas.
A “realidade mutilada” é a realidade costurada, evidentemente. Rossellini sempre se opôs a essa mutilação, como percebeu André Bazin já nos primeiros anos do neorrealismo, explicando a sua estética nestes termos: “Olha-se para a realidade como um todo, não incompreensível, certamente, mas inseparavelmente uma”.
O homo catholicus do sul x o homo economicus (protestante) do norte
Para Rossellini, a civilização drapeada é a do homo catholicus, típico dos países do sul da Europa, arraigadamente voltado para valores essenciais que o blindam contra os enganos do progressismo. A civilização costurada, por sua vez, é a do homo economicus, anglo-saxão e dos países do norte, primeiramente protestante, depois ateísta e materialista, toda voltado ao progresso material. O cineasta reivindicava abertamente sua pertença à cultura latina, romana e católica, e povoou algumas de suas obras-primas com personagens saídos de uma cultura nórdica ou anglo-saxônica que compreendem subitamente seus limites morais e espirituais para se abrirem à grandeza da cultura meridional. Rossellini mostra, de modo mais visível em Stromboli e Viagem à Itália, a passagem de uma cultura a outra, do costurado ao drapeado, isto é: da frieza calculista e racionalista dos que vivem para a eficácia produtiva - mentalidade atribuída ao norte, de onde se propagou ao resto do mundo - à consciência que os povos do sul têm da fraqueza humana, abertos, por isso, à contemplação, ao dolce far niente (que Rossellini chama de “preguiça ativa”), à joie de vivre… Sua intenção é expor a crescente obsessão da sociedade moderna com a técnica - sociedade que, nas palavras do cineasta, quer “matar a imaginação” e causar o esquecimento de que “o homem é falível, e não pode ser somente eficaz”.
A civilização do homo economicus é esta na qual toda ação é baseada num cálculo e visa sempre a uma utilidade. É a que Max Weber descreve em A ética protestante e o espírito do capitalismo: uma civilização moderna cuja origem está atrelada à heresia protestante, considerando que o rompimento luterano e calvinista com a cultura e o modo de viver da antiga cristandade foi o que possibilitou o advento de uma mentalidade propícia ao capitalismo tal como veio a ser em nossa época, que não teria sido possível no seio de uma civilização plenamente católica. Weber observa que…
os protestantes, enquanto camada tanto dominante como dominada, tanto como maioria como enquanto minoria, demonstraram uma inclinação específica ao racionalismo econômico a qual não era nem é de observar entre os católicos na mesma maneira, nem em uma, nem na outra situação. No princípio, portanto, a razão do comportamento distinto deve ser buscada na particularidade intrínseca perene [da mentalidade e das doutrinas protestantes] e não apenas na respectiva situação histórico-política extrínseca das confissões.
Rossellini também contrastava a nova civilização ascendente, que ele criticava, a uma “concepção da vida que”, em suas palavras, “é especificamente católica”. Sendo, em sua visão de mundo, um agostiniano e um franciscano - dois santos cujas vidas ele filmou, em Francisco, Arauto de Deus (1950) e Santo Agostinho (1972) - o diretor explica:
O cristianismo não retrata tudo como sendo bom e perfeito: ele reconhece os erros e os pecados, mas admite também que há uma possibilidade de salvação. É do lado oposto que não se admite senão o homem infalível, coerente e perfeito. E é isso o que me parece monstruoso, que não faz sentido. Na consideração e no exame benevolente do pecado, eu vejo a única possibilidade de se aproximar da verdade. (…) Em nossa civilização, que é latina e cristã, nós não aceitamos que se nos administre a verdade. Nós somos cheios de ironia, de ceticismo; nós estamos continuamente em busca da verdade.
Rossellini reconhece o catolicismo como a via pela qual se arraigou na visão de mundo do homem europeu, particularmente o do sul, a admiração contemplativa da Criação e do Criador - como a contemplação de Maria, irmã de Marta, que senta aos pés do Senhor e aprende que uma só coisa é necessária e que ela escolheu a boa parte -, bem como o respeito misericordioso ao ser humano marcado pelo pecado original. Ele diz:
A capacidade de levar em consideração uns e outros aspectos do homem, de considerá-lo com benevolência, parece-me uma atitude tipicamente latina e italiana. É nosso hábito, muito antigo, de considerar o homem sob todos os seus aspectos. Para mim, é extremamente importante ter nascido em uma tal civilização.
Em uma análise que farei de Stromboli, futuramente, como filme do drapeado, mostrarei que Rossellini não se limitava a fazer o elogio do catolicismo, mas se opunha declaradamente à cultura protestante. Mas já vale ressaltar, aqui, que também Max Weber, um alemão, interpretou o advento do luteranismo e do calvinismo como os momentos históricos em que a “dominação da Igreja Católica - ‘a punir os hereges, mas indulgente com os pecadores’” - dominação “extremamente conveniente, à época pouco a se fazer sentir na prática, muitas vezes quase que apenas ainda formal” - foi substituída, em certas regiões da Europa, pela regulamentação protestante “de toda a conduta de vida, tida a sério e infinitamente importuna, a se incutir, na mais ampla medida concebível, em todas as esferas da vida pública e doméstica”. E o historiador holandês Johan Huizinga, em O Outono da Idade Média, diz o seguinte sobre a civilização medieval católica, diferenciando-a da posterior cultura protestante:
É a diferença que até os dias de hoje distingue os povos latinos dos povos do norte: os do sul encaram as contradições de forma mais leve, sentem menos a necessidade de chegar às últimas consequências, conseguem conciliar com mais facilidade a atitude familiar e irreverente do dia a dia com o êxtase dos momentos de graça.
O povo costumava viver numa rotina de uma religião totalmente exteriorizada, com uma fé muito firme que provocava medos e êxtases, mas não impunha aos ignorantes perguntas ou conflitos espirituais, como faria o protestantismo. A irreverência descontraída, e a sensatez do dia a dia alternavam-se com as emoções mais profundas de devoção passional, que de maneira espasmódica se apossava do povo. Esse contraste contínuo entre um estado de tensão religiosa forte e outro fraco não deve ser compreendido pela divisão do rebanho em dois grupos, os devotos e os mundanos, como se uma parte do povo vivesse sempre na mais alta religiosidade, enquanto os outros fossem devotos apenas na aparência.
Weber, de modo similar, menciona em seu ensaio o “oscilar católico entre pecado, arrependimento, confissão, penitência, alívio, novo pecado…” como algo mais humano, conforme à condição humana, em contraste com o fato de que o “Deus calvinista” e puritano exigia de seus fiéis um sistema ou método para toda a conduta de vida nos seus mais ínfimos detalhes, donde o seu caráter infinitamente mais rígido, sufocante e irrealista. Em suma, a postura católica mais ortodoxa aparece como um realismo integral, que quer a santificação da alma, a purificação do coração, mas o quer por meio da humildade da criatura que se faz pequena diante do único Deus que pode salvar, e do consequente crescimento da misericórdia pelo próximo e pela fragilidade da condição humana. Quer olhar para o pecador com benevolência e piedade, imitando o Senhor Jesus. É isso o que também sabia um outro fundamental “homem do drapeado”, o escritor francês Georges Bernanos (1888-1948). Em seu Diário de um Pároco de Aldeia (1936), lemos, como fala de um dos seus personagens:
Um povo cristão não é um povo de beatos. A Igreja tem os nervos sólidos, o pecado não lhe mete medo; ao contrário. Olha-o de frente, tranquilamente, e até, a exemplo de Nosso Senhor, toma-o para si, assume a sua responsabilidade. Quando um bom operário trabalha convenientemente durante os seis dias da semana, pode-se lhe dar um trago, no sábado, à tardinha…. Veja, eu vou definir um povo cristão pelo seu contrário. O contrário de um povo cristão é um povo triste, um povo de velhos. Você dirá que a definição não é bastante teológica. De acordo! Mas tem por onde fazer refletir os senhores que passam a missa de domingo a bocejar. É natural que bocejem. Você não há de querer que em uma insignificante meia hora por semana a Igreja possa ensinar-lhes a alegria! E, ainda que soubessem de cor o catecismo do Concílio de Trento, não seriam provavelmente mais alegres.
O garoto sofre, como toda gente; e, aliás, é tão desarmado contra a dor, a doença! (…) Mas é do sentimento de sua própria impotência que a criança tira, humildemente, o princípio de sua alegria. Confia em sua mãe, compreende? Presente, passado, futuro, toda a sua vida, a vida inteira, fica suspensa a um olhar, e esse olhar é um sorriso. (…) Pois bem, meu caro, a Igreja foi encarregada por Nosso Senhor de manter no mundo esse espírito de infância, essa ingenuidade, esse frescor. O paganismo não era inimigo da natureza, mas só o cristianismo a engrandece, a exalta, adaptando-a à medida do homem, à medida de seus sonhos. (...) A Igreja dispõe (…) de toda a provisão de alegria reservada a esse triste mundo.
Por isso o catolicismo, ao constituir uma cultura, dá forma a uma civilização drapeada - para voltar ao termo adotado por Rossellini -, que se adapta às formas e necessidades integrais do homem incluindo suas oscilações, fraquezas e falibilidade. É a civilização de homens que não perdem de vista o fato do pecado original, pesado fardo a ser carregado, difícil e doloroso, fonte de sofrimentos, mas também o que torna o coração contrito, e humilde a alma diante de Deus, que se compadece e não nos ignora. É uma cultura que se opõe com veemência a qualquer projeto de sociedade que, deturpando sua compreensão da natureza humana, vise a aperfeiçoar o homem racionalmente, como se nosso aperfeiçoamento fosse irrestrito e não encontrasse em algum momento um obstáculo irreversível, só transponível com a graça de Deus, e de modo algum pelo próprio esforço. Que rejeita a propaganda massiva e a engenharia social perversa e antiética que quer adaptar o homem, à força se necessário, às finalidades técnicas e econômicas da máquina.
Rossellini, iniciando sua atividade cultural mais influente mais ou menos de onde Bernanos parou, como que deu a mão ao escritor na firme denúncia da organização racional da sociedade moderna, saindo em defesa de uma antiga civilização ameaçada de extinção e que mantinha em mente que o sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado - trecho neotestamentário que o diretor citou em muitas de suas entrevistas. Bernanos também, em suas conferências, observava que a civilização da máquina não foi feita para o homem, mas, ao invés disso, “pretende fazer o homem à sua imagem e semelhança, usurpando o poder de Deus”. O diretor de Onde Está a Liberdade (1954) dizia: “eu encontro no cristianismo uma força imensa: é que, nele, a liberdade é absoluta”. E o autor de Liberdade, para quê? (1947) afirmava que um “ideal de liberdade” - gravemente ameaçado na civilização da máquina e da eficácia - “constitui a principal herança das antigas cristandades europeias”…
Hoje, quando o costurado é uma realidade triunfante que controla o mais ínfimo movimento humano feito em todo o globo, onde quer que haja alguém se movendo e respirando, é urgente que aprendamos algo com esses grandes homens, cujas obras e palavras são densos repositórios das experiências de vida de uma geração - não tão antiga assim, mas que, infelizmente, ficou no passado - que ainda estava enraizada em uma espontânea cultura católica que corria no sangue, entranhada nos maneiras de uma parte da civilização ocidental no século XX, em suas formas, em seu modo de viver, e cujo coração ainda pulsava mais espontaneamente nos ritmos do drapeado, mais alinhado aos ritmos da vida, e não da máquina… Que não apenas admiremos suas obras e palavras, mas que absorvamos destas algo do temperamento dos seus autores, de sua serenidade e de sua coragem, de seu intransigente compromisso com a verdade diante das imposturas e experimentos do mundo moderno, que Bernanos definia como uma “conspiração universal e sistemática contra a vida interior”…
Ah! Bem sei o que vocês estão pensando agora! Vocês estão pensando que não se anda para trás. Não foi isso que eu intuí? Porque essa civilização tem a sua filosofia, e o primeiro axioma dessa filosofia é negar a liberdade do homem, é afirmar sua submissão à história, ela mesma submetida à economia.
Não mais aceitar ser “objeto passivo da experiência terrível, irreversível” que Bernanos diz ser a sociedade moderna, encontrar não apenas conteúdos para consumir dentro da mesma dinâmica deformadora imposta pela cultura dos novos tempos, mas aprender e cultivar outra forma de vida com quem chegou a viver de outra forma e a condensou em seu legado artístico e cultural, outra forma de ver, sentir e pensar - eis a pedagogia visada pelo meu trabalho sobre o cinema moderno, bem como por esta série de “notas e artigos do drapeado” que, com este, acabo de iniciar.
Professor, no cinema contemporâneo, principalmente entre os que têm algum acesso a hollywood, há cineastas herdeiros desse civilização drapeada e do olhar do Rosselini?
Do pouco que conheço o que mais me pareceu chegar perto disso foi Malick de Além da Linha Vermelha (nos outros filmes não, apesar de apreciar toda filmografia dele, os vejo mais como experimentos linguísticos-poéticos [uma lira um tanto umbigocêntrica], talvez algo análogo ao estilo de Guimarães Rosa, do que ao cinema drapeado).