Contra a cinefilia: filmes de cinema versus filmes de cinematógrafo
O que importantes cineastas (Bresson, Rossellini, Oliveira, Wenders, Rohmer e Dumont) têm a dizer sobre o assunto.
Há duas classes de cineastas e espectadores: os que amam a imagem em si (como fim), e os que amam mais a vida e a realidade
Para se abordar o problema da cinefilia, é necessária a compreensão de potenciais problemas do próprio cinema, a depender do modo como é realizado e da relação que solicita ou estabelece com o espectador. Pois o primeiro problema se liga não apenas à quantidade de filmes a que o espectador se expõe num determinado período, mas sobretudo à qualidade de tais filmes. “Qualidade” não no sentido vulgar de “bom ou ruim”, mas em sentido próprio, de “modo de ser”, “essência” ou “propriedade que define a natureza da coisa”. Há tipos de filme, formas, estilos, que tendem a produzir no espectador determinados efeitos - cognitivos, emocionais, psicológicos - que vão na direção de um distanciamento com relação ao real e à vida, de uma sobrecarga da mente com imagens-clichê e de uma conexão fetichista com o cinema.
Trata-se, primeiramente, do modelo cinematográfico narrativo da fábrica hollywoodiana de sonhos - da qual David Lynch deu a ver, em sua obra, o aspecto de pesadelo, por possuir algo de mórbido que se disfarça sob o embelezamento artificial das aparências da vida. É o mundo refeito, com suas próprias aparências, mas com uma estrutura inteiramente convencional e plenamente lógica/analítica, ou seja, com outra fenomenalidade, ideal, abstrata, falsa - alienado de sua heterogeneidade e de seus níveis de indeterminação, ambiguidade e mistério ontológico. É o mundo que ressurge diante do nosso olhar recriado à imagem e semelhança dos Estúdios (Universal, Paramount, Warner), das Estrelas (Wayne, Monroe, Dean), e segundo as regras narrativas e temáticas dos Gêneros (Melodrama, Comédia, Suspense). Os mecanismos que estão em jogo nesse modelo cinematográfico - seus princípios, meios e fins, e suas consequências - é precisamente o que eu apresento e explico em detalhes na primeira hora da palestra O Cinema para (muito) além de Hollywood, a quem quiser se aprofundar.
Com outra dinâmica, encontraremos a mesma tendência autorreferente da imagem, da forma e do estilo na faixa experimentalista do cinema europeu, seja entre os vanguardistas dos anos 1920 e 30 ou entre os desconstrucionistas pós-modernos dos anos 60 e 70. É um cinema que se apresenta como mais artisticamente consciente e sofisticado que Hollywood, recusando inclusive a dimensão do relato dramático linear. Mas como tende igualmente ao formalismo, acaba chegando por outras vias ao mesmo amor pela imagem - pela plástica, pela montagem, isto é, por todos os meios que o artista tem à sua disposição para afirmar suas teses e propósitos, em detrimento da potência que o cinematógrafo possui de dar as mãos ao real para criar imagens que sejam a um só tempo criação e descoberta. Ambos os formatos, assim, recusam uma imagem, uma forma, um estilo que transcendam a si mesmos para contemplar amorosamente e revelar a presença do outro que se apresenta diante das lentes.
Tais problemas, tendo sido intuídos e compreendidos por homens que estudaram e se envolveram com o cinema, impulsionaram a criação de um outro modo de se relacionar com a imagem cinematográfica. Este nunca se tornaria o modo dominante ao redor do globo, mas foi determinante para as evoluções do cinema considerado não como espetáculo voltado primordialmente ao entretenimento - nem, por outro lado, como arte devotada a experimentações formalistas análogas às das artes plásticas modernas -, mas como meio de expressão que traz consigo algo de inteiramente novo e específico a oferecer à humanidade. Contrapondo-se às formas cinematográficas que estavam em desalinho com as especificidades expressivas do seu veículo de base - a câmera, que capta imagens em movimento diretamente extraídas da superfície da realidade sensível e, assim, possui afinidades com esta -, surge então o cinema moderno, a partir do neorrealismo italiano de Roberto Rossellini, Vittorio De Sica e Luchino Visconti, extraindo do cinematógrafo, enfim, suas potências inexploradas de meio privilegiado para se comunicar aos homens contemporâneos certas verdades essenciais da natureza física e de nossa vida moral, isto é, da estrutura da realidade e da nossa condição de seres corpóreos e espirituais que vivem entre o visível e o invisível, o temporal e o eterno. É o que eu apresento e explico de forma detalhada a partir da segunda hora da palestra O Cinema para (muito) além de Hollywood e no meu curso sobre As Raízes Católicas e Fenomenológicas do Cinema Moderno.
André Bazin, em sua teorização e valorização da estética do neorrealismo italiano e de cineastas precursores do cinema moderno como Jean Renoir - e em sua concomitante desvalorização da montagem analítica (típica do cinema narrativo e do construtivismo soviético) -, dividia os cineastas entre aqueles que acreditam na realidade e os que acreditam na imagem. “Por ‘imagem’”, diz ele, “entendo de modo bem amplo tudo aquilo que a representação na tela pode acrescentar à coisa representada”. Siegfried Kracauer, analogamente, advogava por um cinema que partisse da terra e moldasse “os padrões imaginativos do homem para a terra”, e não o contrário - para, dessa forma, “redimir a realidade física” que esquecemos com nossas tendências modernas à abstração e ao cientificismo. Também Deleuze, em A Imagem-Tempo, fala sobre um cinema que faz “o pensamento comparecer às categorias da vida” e não o oposto, um que visa ao alcance de imagens inteiras, ou puras, contra o clichê. E Vilém Flusser notou o mesmo problema ao se referir à imagem fotográfica como podendo ser usada como um mapa, que nos guiasse em nosso contato com o mundo, mas que costuma ser usada como um biombo - um muro, uma barreira. Em vez de usarmos as imagens para conhecer o mundo, diz ele, preferimos “viver num mundo de imagens”.
Cineastas contra o cinema. Amantes do cinematógrafo contra a cinefilia
Eis as razões pelas quais ocorre algo que alguns podem, à primeira vista, achar contraditório ou paradoxal: o fato de que muitos cineastas importantes e célebres, em particular os da tradição do cinema moderno, em seus escritos e entrevistas, lançam um grave olhar de desconfiança na direção da imagem, do cinema dominante e do fenômeno da cinefilia. Os que estranham tal fato pensam que uma pessoa envolvida com o cinema deveria amar incondicionalmente tudo o que está relacionado a ele. Acontece que esta é apenas a atitude típica do cinéfilo, para quem tudo o que for considerado “bom cinema” está acima de tudo o mais, de todo valor e critério, independentemente dos princípios, meios e fins de cada abordagem formal e dos verdadeiros conflitos e antagonismos que existem entre elas nos planos cultural e espiritual. Os outros, por sua vez, percebem as diferentes potências - às vezes opostas, antagônicas - que possui o cinematógrafo a depender do uso que se faz dele, os distintos efeitos e influências que cada tipo de filme exerce sobre o indivíduo e a sociedade - e, como pessoas íntegras, que não dissociaram suas apreciações estéticas de suas posições éticas e visões metafísicas, emitem um juízo e tomam uma posição.
É por isso, precisamente, que o cinema moderno ao qual me refiro não é, de modo algum, um período histórico/cronológico de todo o cinema em geral, mas a fundação de um novo fenômeno estético, radicalmente distinto do cinema produzido até ali. Em meu trabalho - na palestra e no curso já mencionados, ambos baseados em meu livro ainda a ser publicado - identifico Roberto Rossellini, Robert Bresson e André Bazin como a “trindade” que se encontra na gênese primeira e na realização fundadora mais rigorosa do realismo fenomenológico que é o do cinema moderno. E se Bazin privilegiou tanto, em seus escritos, as obras de Rossellini e Bresson, foi porque estes estavam na vanguarda dos cineastas que amam a realidade, e que se sentem atraídos pelo cinema somente na medida em que suas imagens podem ser, de fato, amálgamas de ficção e documento, de pensamento e fato, de imaginação e verdade.
Rossellini, nos anos 60, migrou para a televisão e comunicava uma visão nada positiva ou otimista sobre o estado contemporâneo do cinema e seus efeitos sobre a cultura - tendo sido, aliás, sempre muito crítico com relação ao modelo cinematográfico com que Hollywood soterrou o resto do mundo. Criticou duramente tanto o cinema comercial de grande espetáculo como as tendências do cinema europeu sessentista que acompanhavam as modas das revoluções culturais e comportamentais.
O cinema está morto, ou pelo menos agonizante. (...) O cinema, como se faz hoje em dia, é dessacralizado e cínico e não leva senão à destruição gratuita. (…) Os objetos de consumo propagados pelas mídias que permitem uma ampla difusão (o cinema, a rádio, a televisão etc.) exigem do público uma bagagem cultural baixa e (...) fizeram com que as crianças tivessem acesso ao entretenimento destinado aos adultos, fundindo assim os dois públicos, o infantil e o adulto, tendo por consequência: uma regressão dos adultos que, incapazes como são de enfrentar as dificuldades e a complexidade da vida moderna, recorrem aos clichês que confirmam e acentuam, por sua vez, o seu infantilismo.
O cinema, o rádio, a televisão, as revistas e a literatura de ficção científica são os meios mais ordinários e mais acessíveis pelos quais o homem especializado crê que tem um contato com o mundo. Mas estes (…) não são expressão de um artista, de um indivíduo, nem de um povo, mas manipulados coletivamente por especialistas e técnicos para satisfazer de alguma maneira as necessidades de evasão das massas.
A esses usos do cinema e das mídias que criticava, Rossellini opunha o seu próprio:
se o mundo representado é semelhante ao mundo daquele que lê, escuta ou olha, então o artista, para ser de fato um, deve ter a capacidade de dar a esse mundo uma claridade, uma transparência e uma evidência que o faça aparecer em toda a sua significação. Em consequência desse poder, o artista tem igualmente uma missão de educador. O cinema tem, mais do que todos os outros meios de expressão, o poder de explicar, pela força da imagem, pois desposa facilmente a configuração do real. O cinema é eminentemente sugestivo: dado que ele pode persuadir sem alcançar o nível da arte, ele já foi amplamente utilizado para fins de propaganda. Isto impõe a todos que se exprimem pelos meios do cinema que tenham um desenvolvido senso de responsabilidade, uma grande capacidade de escolha e uma sólida sensibilidade para a verdade. Por isso o cinema deve se tornar uma escola, uma escola sui generis.
Bresson, por sua vez, enxergou tão nitidamente os problemas éticos, metafísicos e estéticos do cinema dominante que fez questão de dar um novo nome à sua arte, para evidenciar que se tratava de algo radicalmente distinto. Chamou-a então de cinematógrafo, em contraposição ao cinema que ele reprovava - cinema que representaria, para ele, o infeliz uso dominante do dispositivo de um modo corruptivo de suas especificidades e potências únicas e mais elevadas. Em seu livro, Notas sobre o Cinematógrafo (1975), encontramos esta diferenciação:
Os filmes de CINEMA são documentos de historiador para guardar em arquivos: como representava, em 19.., Senhor X, Senhorita Y.
O teatro fotografado ou CINEMA quer que um cineasta ou um diretor faça atores representarem e fotografe esses atores representando; em seguida que ele alinhe as imagens. Teatro bastardo ao qual falta o que faz o teatro: presença material de atores vivos, ação direta do público sobre os atores.
O CINEMATÓGRAFO É UMA ESCRITA COM IMAGENS EM MOVIMENTO E SONS.
Filme de CINEMATÓGRAFO em que a expressão é obtida pelas relações de imagens e sons, e não por uma mímica, gestos e entonação de voz (de atores ou de não-atores). Que não analisa nem explica. Que recompõe.
Um ator está no CINEMATÓGRAFO como num país estrangeiro. Ele não fala aquela língua.
É interessante perceber que Bresson escolheu dar à arte o nome do dispositivo - num movimento, portanto, de despojamento e retorno às origens -, já que cinematógrafo foi o nome dado aos irmãos Lumière para a câmera que criaram em 1895, com a qual foram realizados os primeiros filmes. Isso é interessante porque, com efeito, o CINEMA MODERNO = CINEMATÓGRAFO significa, em contraposição ao CINEMA (NARRATIVO), a consciente negação de toda a sofisticação conquistada ao longo de cinco décadas de “linguagem cinematográfica” pela grande indústria com seu acervo de convenções para a narrativa audiovisual - adotando-se, em vez disso, uma postura muito mais primitiva e bruta diante dos eventos filmados, que foi desde o início vista como uma recuperação do espírito dos Irmãos Lumière. É o que confirmam Éric Rohmer e François Truffaut no vídeo abaixo, trecho de uma entrevista realizada na ocasião de uma reexibição de O Atalante (1934) de Jean Vigo.
O cineasta português Manoel de Oliveira, ao falar sobre o cinema dominante, do espetáculo, associa-o ao circo - e, explicando por que afirmara ser o seu um cinema de resistência, análogo ao cinematógrafo de Bresson, diz:
O que eu não gosto de ver no cinema é isso: circo. Quer dizer: o que eu quero fazer nos meus filmes é tudo, menos cinema.
O alemão Wim Wenders, seguindo a mesma linha, embutiu muitas vezes em seus filmes uma teoria da imagem, o que fez em O Céu de Lisboa (1994), Até o Fim do Mundo (1991), Identidade de Nós Mesmos (1989) e, entre outros, Alice Nas Cidades (1974), do qual vemos abaixo um trecho no qual o protagonista elabora a respeito da imagem televisiva americana. A teoria de Wenders, igualmente próxima das ideias de Bazin, Rossellini e Bresson, explica, inclusive, o tipo de imagem que Wenders sempre buscou realizar desde o início da carreira: a imagem inteira, a imagem inocente, que quer mostrar algo de forma direta; que não quer nada do espectador, que não nos quer vender nada, nenhum produto, nenhuma ideologia ou tese. Ou seja: uma imagem que é propriamente uma imagem, e não um clichê. Como Rossellini, Wenders também cria que a imagem cinematográfica deve mostrar, em vez de demonstrar.
Vê-se que os cineastas dessa tradição cinematográfica são tudo, menos ingênuos com relação à imagem e ao cinema em suas potências e usos. Por isso mesmo muitos deles dirigiram a mesma desconfiança e tomaram a mesma distância para com o fenômeno da cinefilia - como fez Éric Rohmer, por exemplo, que chegou a afirmar em um artigo:
Nesse momento, eu desprezo, eu odeio a cinefilia, a cultura cinéfila.
Bruno Dumont, conterrâneo de Rohmer, segue o mesmo caminho, ao relatar:
Quando eu era estudante de filosofia, eu via muitos filmes, eu lia muito, mas agora isso acabou. É algo que passou, e não sou mais cinéfilo, de todo. De certa maneira, e eu digo isso sem brincadeira, eu não gosto do cinema. Como se fazer cinema cortasse algo do olhar. Eu penso que há algo de morto no cinema. Para mim, os cinéfilos são extra-terrestres. Eu penso que o cineasta é alguém que deve, antes de mais nada, viver, para depois fazer, chegar ao cinema. Eu terminei no cinema, mas toda a minha vida está aí, na existência, não no cinema. Eu não me alimento de filmes, não vivo dentro deles. Mas minha única paixão é fazer filmes.
O aparente paradoxo dessas afirmações de Dumont se explica pela fórmula que já vimos de Bazin, o principal mentor teórico de todos estes cineastas. Como Bazin, eles são amantes do cinematógrafo - “apaixonados por fazer filmes” - somente na medida em que o dispositivo, meio de criação e potencialmente também de descoberta e revelação, é capaz de conduzir o ser humano e seu olhar à vida e ao real, ou seja, a coisas que ultrapassam a imaginação dos artistas, as quais amam mais do que ao CINEMA. Imagem que, infelizmente, no CINEMA, tende a encerrar-se e ser espelho por meio do qual o cineasta contempla a si mesmo, a suas ideias e a seu estilo; por meio do qual o CINEMA se contempla a si mesmo e ao seu mundo paralelo.
Quem percorrer os depoimentos de outros cineastas importantes dessa linhagem - como Visconti, Rivette, Wajda, Pialat, Denis, Dardenne, Kiarostami, entre outros - não demorará a encontrar falas similares ou idênticas às que reproduzi aqui.
Não se trata, portanto, de uma contradição, mas de algo profundamente coerente com o fato de que a abordagem estética cinematográfica fundada ou continuada por esses cineastas tenha em sua gênese um movimento de despojamento, de ascese do estilo - ascese que foi sempre, precisamente, o que definiu a modernidade de um filme…
Coerente será também, que, a partir dos anos 60, mais ainda nos anos 90, e mais ainda atualmente, gerações inteiras de cineastas cinéfilos nos EUA, na Europa e no restante do mundo farão cada vez mais filmes que não parecem mais ser capazes de acessar a vida diretamente, na medida em que seus próprios criadores já chegam ao cinema com a imaginação atolada em referências cinematográficas, com mais experiência fílmica do que de vida, pensando só em cinema. São cineastas que exibem um imenso domínio técnico do ofício - muitos deles com claras pretensões de serem artísticos e poéticos -, mas cujo universo parece sem alma, sem vida, sem vibração, pois são contaminados por um imenso esteticismo e já não utilizam o cinematógrafo como meio de expressão de alguma convicção ética e metafísica muito séria à qual estariam prontos a doar a vida - como Rossellini, Bresson e companhia. Parecem preocupados apenas com questões de estilo ou, no máximo, com alguma causa política típica dos novos tempos que não pode chegar a dar verdadeira espessura ontológica ou ressonância espiritual às suas imagens. Mas esse será o tema de um outro texto, sequência deste, no qual elaborarei um pouco mais a respeito da cinefilia, com destaque para o problema da cinefilia dos cineastas e da cinefilia dos críticos.
Opa! Texto muito bom. Tenho uma pergunta: Como funcionaria o processo criativo de um cinematógrafo (usei bem o termo?), visto que as imagens e as técnicas não deveriam ser usadas para expressar o pensamento? Eu sempre pensei que o artista deveria comunicar suas ideias, temas, experiências e etc... Através de meios narrativos, técnicos, metafóricos, e claro, pelas imagens.