Ainda Estou Aqui (2024), de Walter Salles
O que eu esperava do renomado diretor brasileiro, e o que eu encontrei
Como tinha uns ingressos de cortesia dos Cinemas UCI amassando na carteira há bastante tempo, decidi assistir a Ainda Estou Aqui, filme de um diretor cujos lançamentos não costumo correr para ver na tela grande (ou em qualquer outra tela, para ser sincero). A motivação foi o falatório atual a respeito do filme, após o Globo de Ouro para Fernanda Torres e a indicação ao Oscar em três categorias. Quis conferir se me surpreenderia, unindo-me ao coro dos entusiastas da produção - e cheguei à sessão aberto a essa possibilidade -, ou se encontraria algo próximo daquilo que esperava, já tendo uma opinião sobre o nível usual do trabalho de Walter Salles.
Nenhuma surpresa. Cada movimento da direção de Walter Salles continua dando a impressão de uma ideia que ele teve, de uma sacada, de uma tentativa... Nunca é aquele tipo de expressão vigorosa e convicta (que é a do artista genuíno e maduro, inspirado) que, apesar de não se entender imediatamente como e por que se realizou, sente-se como não podendo ter sido realizada de nenhum outro modo. Em Salles, há uma distância entre nós e os eventos mostrados, um filtro, que é o próprio diretor e suas ideias, suas referências, sua técnica - um pouco como ocorre quando assistimos a um comercial ou a um videoclipe -, e, assim, as coisas jamais ganham vida e autonomia. Percebe-se o esforço do diretor para realizar isto ou aquilo de modo a obter este ou aquele efeito ou sentido, e a intenção de cada plano e cena. Estilística e dramaturgicamente, nota-se a cada instante o que ele pensou e quis fazer, o porquê de cada escolha. É o típico "diretor profissional", com seu toque calculado/eficaz.
Para piorar, as diferentes escolhas estéticas não se encaixam bem ao longo do filme, não produzem juntas uma obra íntegra. O resultado final parece mais um projeto do que uma obra. O todo resulta inorgânico, mecânico, os procedimentos conscientes demais. Nada nos impacta como inspirado e fluido, nada sai de um âmago pessoal ou de uma autenticidade de expressão irredutível, e até o que há de "espontâneo" no filme deixa evidentes sinais do esforço que foi feito para que se parecesse espontâneo, como nas cenas em que há muitos familiares interagindo ao mesmo tempo, com falas realistas e aparentemente improvisadas se sobrepondo.
Salles não realiza tais cenas com a fluência de quem já fala esta língua sem esforço e sem pensar demais, como faziam Jean Renoir, Jacques Rivette e Maurice Pialat, por exemplo. A impressão é a de que pegou algumas referências fílmicas - para as cenas de interação familiar, além dos três grandes citados, talvez o Olivier Assayas de Horas de Verão - e consegue-se até imaginá-lo mostrando cenas para a equipe e dizendo: "vejam, é algo assim que queremos realizar agora, algo espontâneo". Os cineastas das tradições realistas francesa e italiana, ao realizar esse tipo de mise en scène, faziam-no por crer numa determinada potência expressiva do cinematógrafo em sua conexão inelutável com a dimensão visível da realidade, que é viva e heterogênea, fugindo, por isso, da convencionalidade engessada da encenação teatral tradicional que se vê também no cinema narrativo, isto é, na “linguagem cinematográfica” de origem hollywoodiana. Tal procedimento, em seus filmes, encontrava-se na mais completa unidade com todos os outros... Já Walter Salles, quando tenta fazê-lo, não o faz por uma consciência formal elevada da arte do cinematógrafo, mas porque visa, em tais cenas, a determinados efeitos emocionais, psicológicos e de persuasão. O que o prova é a não-unidade destas cenas com o restante do filme, que na maior parte do tempo se encontra a grande distância da tradição realista e lembra mais a televisão.
Alguns momentos das referidas cenas, isoladamente, são bem-sucedidos... Porém, ao lado destas, muitas outras sequências são indisfarçadamente forçadas e engolidas pela estereotipia, como na ambientação do idílio edênico da família da protagonista com as reconstituições romantizadas do contexto histórico e cultural de 1970, com o pôster de A Chinesa de Jean-Luc Godard no quarto da filha mais velha, os cartazes e os vinis de bandas de rock, as referências à tropicália, a maconha, as filmagens estilizadas em Super-8, e as meninas mais jovens dançando na sala de estar a sexy Je t'aime... moi non plus de Serge Gainsbourg e Jane Birkin olhando para a câmera no início da cena, momento constrangedor pela puerilidade estética clichê e afetação discursiva. Ou você é pop-contracultural-politizado como Godard, ou você é realista, fenomenológico e visceral como Pialat: não dá pra ser os dois. Walter Salles não é nem um, nem outro. Ele apenas tem essas referências úteis na cabeça - o Antonioni sessentista é outra delas, que se capta implícita e explicitamente - e saca, nesta ou naquela cena, a que lhe parece mais legal e sedutora. A cena das meninas colocando o vinil de Gainsbourg e dançando, aliás, faz pensar naquela, inesquecível, do belíssimo Cría Cuervos (1976) de Carlos Saura, em que a pequena Ana Torrent e suas duas irmãs ouvem e dançam Por qué te vas?, de Jeanette. Muito provavelmente foi outra referência consciente de Salles, mas seria covardia comparar as duas cenas, já que a do cineasta espanhol é nada menos que um ápice de sensibilidade e poesia cinematográfica e funciona de maneira perfeita, orgânica, na completude da obra. Há um certo risco sendo corrido em Saura, em sua expressão sutil e experimentação artística, formal, em seu estado de alerta para o que a obra solicita ou possibilita ao longo da realização; e Walter Salles, entre os diretores, é daqueles não correm riscos.
Ao sair da sessão, lembrei que havia escrito em 2012 uma crítica ao Na Estrada de Walter Salles - adaptação ao cinema de On The Road de Jack Kerouac, produzida por Coppola - e alguns dos problemas que ressaltei quanto à sua direção são muito próximos a estes que descrevi acima quanto a Ainda Estou Aqui… Cito a mim mesmo:
Walter Salles prova, mais uma vez, ser um bom diretor de cinema. Daqueles que os produtores sabem que realizará um filme bem dirigido, corretamente executado em todos os aspectos técnicos, e satisfatório em termos comerciais. Existe uma maneira de se realizar bons filmes, de dirigi-los corretamente, e assim Walter Salles os faz. Com isso, os seus são exemplares filmes de cinema, apenas, que não respiram o ar da vida. A tela não pulsa, o filme não a transborda. O conteúdo fica muito bem contido nos moldes, nas técnicas, nos planos, nos quadros. Era preciso ser mais, ou outra coisa, que um ótimo diretor...
…para que algo de fora dos planos, de fora dos quadros, impregnasse a imagem com uma força outra, e nos fizesse sentir como diante de uma obra de arte. É isso o que não ocorre em Salles, e o fato de não ocorrer só é tão incômodo porque fareja-se nele, a cada projeto, a pretensão de ser algo mais artístico e elevado que o cinemão comercial. Ele é, ainda, um diretor eficaz em imprimir em seus filmes um fabricado toque “autoral”, para pegar dois ou três prêmios em festivais importantes.
Era preciso, ativamente e em algum instante, “perder a mão”, deixar as coisas saírem do seu controle, tomarem vida, deixar-se não saber tudo, para poder descobrir algo. (…) No entanto, no filme em questão, temos sequências, compostas por cenas, por sua vez montadas com planos, em um roteiro estruturado e perfeitamente estudado para a boa recepção do público e repleto de personagens de cinema [que nos afetam da mesma maneira que fantoches]. Na Estrada é apenas um filme. Mais um. Salles encerra, sufoca a vida nos planos.
Quanto à adaptação do livro de Kerouac, o que pode ser colocado em questão é a apropriação de um texto vibrante de ritmo jazzístico, de melodias e quebras, de abertura e improvisações, e a transmutação deste em um universo cinematográfico imóvel e cosmético em que nada, absolutamente nada, nos oferece desafios de nenhuma ordem [nem mesmo o tratamento adolescente que Salles faz das cenas mais “transgressoras” do ponto de vista moral]. Nada em Na Estrada nos deixa com um ponto de interrogação, não apenas com relação ao filme em si, mas quanto à vida, à arte, à literatura, ao cinema... O filme tem pouca ou nenhuma ressonância para além do seu tempo efetivo de duração. Amanhã, terá sido esquecido.
Estas mesmas observações posso replicar quanto a Ainda Estou Aqui. Não li o livro de Marcelo Rubens Paiva em que se baseou o filme, mas ainda se trata de um “universo cinematográfico imóvel e cosmético em que nada nos oferece desafios”, com a diferença de que, desta vez, Walter Salles tentou imprimir um tom improvisado, mais vivo, em algumas cenas isoladas, de um modo esteticista que não chega a afetar a substância de sua expressão, na qual predomina o aspecto discursivo e analisado.
Quanto a Fernanda Torres, não tenho críticas à atuação, mas tampouco grandes elogios a fazer, e não creio que se justifique todo o barulho. Vê-se que Walter Salles escolheu a via da economia na expressão para essa personagem, e vê-se que essa escolha foi executada corretamente por Fernanda - tudo sempre muito "correto", em Walter Salles, com seu "domínio técnico", tudo sempre justificado dramática e narrativamente, também. Por isso mesmo, nem de longe se trata de qualquer coisa de inspirador, de misterioso, que acumule interiormente uma verdadeira tensão ou que parta de alguma convicção ética ou metafísica profunda.
Em geral, costuma ser este mesmo o problema do esteticismo: a falta de unidade. E também com relação à direção de atores, neste filme, há o problema da diversidade de referências e métodos que não se encaixam bem e parecem conflitar entre si. A opção pelo mínimo da expressão do ator - pela contenção, pela ascese - tem origem na obra de Robert Bresson e, em outro grau e de outra maneira, no neorrealismo italiano. Mas, em ambos os casos, como em cineastas posteriores como Kiarostami (mais neorrealista) e os Dardenne (mais bressonianos), trata-se de um elemento profundamente conectado a todas as outras escolhas estéticas dos diretores, e às suas convicções éticas e metafísicas, visando, entre outras coisas, à expressão da inefabilidade do mundo interior humano, à intuição da alma e do mundo moral das pessoas, a um movimento de interiorização através dos limites expressivos do rosto, do corpo e do mundo físico, sinais do invisível no mundo visível…
Mas, espere aí: elevamos demais a conversa, agora, e assim nos distanciamos demais da realidade de Salles, que conhece e domina as referências, mas as utiliza como que a esmo, como trunfos, cartas na manga, como faz um publicitário, e com intenções demasiado positivistas. O registro de atuação dos outros atores ao redor de Fernanda Torres é totalmente distinto, e em alguns casos - como com a filha mais velha - forçado e caricatural, o oposto da contenção. Podem dizer que a economia expressiva não era para ser uma opção estética radical, mas um tratamento caracterológico da protagonista, isoladamente. Ainda assim, a ressonância de sua atuação nunca atinge algo de profundamente moral e muito menos espiritual. Não passa de mais um recurso útil de que o diretor lançou mão para, com sua eficácia técnica, destacar Fernanda Torres à frente do elenco em uma “grande atuação” tocante e emocionante, enternecedora também por sabermos ser a representação de uma pessoa real, que viveu uma trágica e infeliz história real, que poderia tê-la feito desabar, mas não o fez: ela segurou a onda, interiormente, e ordenou que todos sorrissem para a foto…
Ocorre também que, no aspecto dramático, mesmo os momentos de maior qualidade são asfixiados pelo escopo muito limitado da “mensagem” que Salles quer tecer e comunicar a cada cena e com o todo do filme. Chama a atenção, como já comentei, o tratamento que ele dá à família dos protagonistas antes do desaparecimento de Rubens Paiva, como que vivendo em um idílico Éden pré-lapsário - a família “comercial de margarina” da aurora da contracultura - e, subitamente, aquele mundo sem sombras, de absoluta leveza e inocência solar é todo submerso em trevas - grande “sacada” conceitual/estrutural (bem tediosa) dos dois roteiristas e do diretor. Este tratamento pode ser tudo, menos realista… Donde se vê o caráter esquemático e estratégico do relativo grau de realismo que Salles tentou imprimir nas cenas de convívio familiar - enquanto o realismo fenomenológico, no cinema, quando utilizado com integridade, refreando todo excesso analítico e retórico, tem precisamente a intenção de não manipular o espectador, tratá-lo como ser dotado de liberdade, para elevar o nível de sua relação com o filme, engajando não apenas seu intelecto ou sua emoção, mas toda a sua estrutura cognitiva, moral e espiritual, ao abordar o mundo filmado como autônomo, complexo, heterogêneo, repleto de paradoxos estruturais... O problema é que as convicções de Walter Salles são exclusivamente político-ideológicas, embelezadas e suavizadas por uma pseudo-sofisticação cultural e estética; daí que tudo em seu universo - no conteúdo como na forma - deva apenas cumprir um papel de sedução sensorial-estilística e de persuasão intelectual e discursiva, do modo mais homogêneo possível, sem perder os ares “artísticos”.
Nenhuma surpresa, então. Assim como não esperava nada de diferente de Salles, tampouco o espero de premiações como o Globo de Ouro e o Oscar. Walter Salles, diretor do "cinemão de qualidade", fez o produto "de qualidade" que a Academia esperava para este ano, oportunidade de virtuosamente recompensar artistas de países em desenvolvimento que batem nas mesmas teclas políticas que acederam ao mainstream midiático global nos últimos tempos, no contexto de uma já saturada guerra político-cultural financiada por gigantescas corporações internacionais. Indicando-o e, muito provavelmente, recompensando-o, a Academia continuará também provando ao mundo que a indústria norte-americana do cinema não apenas imbeciliza a população mundial, mas reconhece e premia o valor do "cinema de qualidade" feito lá mesmo ou ao redor do mundo para as pessoas pensarem e se conscientizarem acerca de questões políticas de grande relevância, atualidade e urgência… Premiações que garantem virtuosos e engajados acceptance speeches para a mídia mundial reproduzir e elogiar uma semana inteira, aplaudidos pelos que creem ou fingem crer nas boas intenções e na retidão da grande indústria cinematográfica.
Rômulo Cyríaco
Fui assistir só hoje e o segundo parágrafo desse texto resume toda a obra: é tudo fabricado do jeito mais superficial possível. Parece que nem os próprios atores acreditam que as coisas eram daquele jeito.
Parabéns, belíssimo texto. Sou im espectador da arte, não im grande conhecedor da ctecnica. Consegui perceber na crítica como o universo cinematográfico pode abarcar a vida ou apenas uma pintura realista maquiando emoções por propósitos ideológicos. Senti na pele o sentimento relatado por Rômulo, quando se refere a aspectos culturais dos anos 70. Tempos sombrios que misturavam sensibilidade e brutalidade. Muito boa análise.
Saulo